Em 29 de novembro de 1781, a tripulação do navio negreiro Zong lançou ao mar, durante dias, mais de 130 africanos escravizados. A atitude do capitão não foi fruto de pânico ou naufrágio, mas de um cálculo frio: descartar “mercadoria” para obter, via seguro, o reembolso do prejuízo. Os criminosos perderam a ação judicial em segunda instância graças à mobilização de abolicionistas que expuseram a barbárie.
240 anos depois, São Paulo começou a vestir seus agentes com câmeras corporais, prometendo revisão instantânea dos chamados “lances duvidosos” de abordagens policiais. São centenas de horas de gravação que, em teoria, dariam acesso irrestrito à verdade. Mas, como no Zong, em que se escolhia o que valia indenizar e o que podia ser ocultado, fica no ar a pergunta: quem editará esse replay? Quem decide o que o público vai ver?
Surge, então, o “VAR da vida real”: um apito eletrônico que promete corrigir abusos de poder, mas pode se tornar ferramenta de controle. A “transparência total” em São Paulo convence tanto quanto engana.
Uma reportagem do UOL Tab mostrou que PMs aprenderam a manipular o sistema de ponta a ponta: apagar vídeos com o botão “excluir”; atrasar o upload por 90 dias para que expire automaticamente; alterar datas para driblar o prazo de retenção; e até programar exclusões privilegiadas para oficiais de alta patente.
Também basta cobrir a lente com a farda ou ligar o áudio só depois do disparo, além de editar manualmente data, hora e identidade na “Doca”, entregando apenas os trechos convenientes à Justiça. Tudo acontece sem fiscalização externa, garantindo que o replay seja sempre narrado por quem tem o poder de retratar o lance.
Segundo reportagem do G1, o Ministério Público requisitou imagens de 5,7 mil PMs, mas recebeu apenas 2 mil sob argumento de ausência de acionamento da câmera, falha no botão de gravação ou bateria descarregada.
Sem garantias de controle independente, a câmera no peito vira instrumento de poder, não de justiça. A promessa de transparência se desfaz quando cada segundo de imagem pode ser apagado, editado ou escondido por quem define o que é “relevante”.
Para que o “VAR da vida real” cumpra uma função verdadeiramente democrática, é urgente estabelecer freios e contrapesos: protocolos claros de ativação, retenção e acesso irrestrito ao material, além de instâncias independentes de auditoria. Sem isso, continuaremos filmando a injustiça enquanto a editamos, condenando corpos ao silêncio e deixando escapar a única prova capaz de corrigir o lance. Afinal, não basta gravar: é preciso garantir que cada segundo registrado possa valer a vida de alguém, inclusive, do policial.
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