Surgido no pós-escravidão no fim do século 19, sul dos Estados Unidos, o blues foi uma forma de os afro-americanos expressarem as dores da opressão, do racismo, da pobreza e da segregação ao mesmo tempo em que transmitiam força, fé e resistência. O estilo musical consolidou elementos culturais, linguísticos e espirituais da comunidade negra, criando uma linguagem própria que refletia suas vivências e lutas.
E meus trutas, quando falamos de blues, tem uma história nesse mundo que sempre chama atenção: a do Robert Johnson, lenda do gênero, que teria feito um pacto com o diabo numa encruzilhada pra tocar guitarra como ninguém. Dizem que ele era um músico comum, sumiu por um tempo e voltou tocando como se tivesse nascido com o violão nas mãos.
A galera não entendeu e inventou logo que só podia ser coisa do capeta. Mas aí que tá: essa história tem um quê de racismo também. Era difícil pra sociedade da época aceitar que um homem negro, pobre, do sul dos Estados Unidos, pudesse ter um talento tão absurdo. Então ao invés de reconhecerem o esforço e a genialidade dele, preferiram dizer que ele tinha vendido a alma. Essa lenda virou parte do folclore do blues, mas também mostra como sempre tentaram demonizar o talento preto.
E entre blues, demônios e história boa, chegamos no tema da coluna dessa semana: o longa “Pecadores” estrelado por Michael B. Jordan, lançado em abril deste ano, que carrega um significado simbólico profundo, refletindo os temas centrais da narrativa. Dirigido por Ryan Coogler, o filme se passa no Mississippi dos anos 1930 e mistura elementos de terror, drama social e musical.
Na trama, Jordan interpreta os irmãos gêmeos Elias e Elijah Smoke - ou Fumaça e Fuligem, para os mais íntimos - que retornam à sua cidade natal para abrir uma casa de show focada no blues e o público negro, mas se deparam com forças sobrenaturais e ameaças que evocam os horrores do passado, incluindo uma versão vampírica do Ku Klux Klan.
Como eu considero spoiler um pecado capital, não estou aqui pra destrinchar os acontecimentos do filme, mas para fazer uma reflexão do quanto “Pecadores” já está marcado na história do cinema e na vida dos que se conectam pela ancestralidade. Para isso, vou fazer fazer apontamentos que, juro, não comprometerá sua experiência.
A atuação de Jordan é absurda. Parece mesmo que são dois atores diferentes. Ele muda tudo entre um irmão e outro: olhar, voz, jeito de andar… e carrega a história com uma entrega dupla da alma que merece todos os prêmios possíveis.
E aí entra o vilão, Remmick, vivido por Jack O’Connell, que também está gigante. Ele é um vampiro branco que quer mais do que sangue: quer o dom de tocar blues. Isso porque ele acredita que, se dominar essa arte que vem da alma preta, vai conseguir se conectar com seus próprios ancestrais demoníacos. É uma inversão sinistra, com um branco tentando roubar a música negra pra alcançar poder sobrenatural. Uma metáfora forte demais sobre apropriação, exploração e perversidade.
Apesar do clima tenso e sombrio que domina “Pecadores”, o filme também traz um humor sutil e inteligente, daquele que não quebra o clima, só afia ainda mais a crítica. E nisso, Delroy Lindo e Omar Benson Miller brilham. Os dois entregam frases cheias de sarcasmo, aquele riso que vem da dor, da experiência, da vivência. É o tipo de humor que quem é preto reconhece na hora, tá ligado? Tipo um jeito de rir pra não enlouquecer, de provocar enquanto se resiste.
Além deles, o elenco ainda conta com duas atuações que são simplesmente fenomenais: Wunmi Mosaku, que carrega uma força ancestral no olhar, e Hailee Steinfeld, que surpreende com uma entrega delicada e firme. As duas personagens têm um peso importante na trama, mas… aqui é sem spoiler, então vamos guardar essas surpresas.
Mas o mais forte de “Pecadores” é como ele fala com o nosso presente. O filme não é só sobre o passado ou um terror inventado. Ele é sobre o que a gente ainda vive hoje. A perseguição, o medo constante, a tentativa de apagar nossa cultura, nossa arte, nossa alma. O vilão quer roubar o blues como forma de alcançar poder e isso diz muito sobre como o mundo sempre tentou sugar da negritude sem reconhecer sua origem.
“Pecadores” é mais do que cinema: é uma aula sobre racismo, apropriação, espiritualidade e resistência. É também um espelho porque, infelizmente, a segregação que ele mostra nos anos 1930 ainda nos cerca hoje, só muda de roupa. Assistir a esse filme é entender que o terror que nos assombra tem história. Mas também lembrar que a nossa força é ancestral. E que, quando a gente canta, quando a gente toca, quando a gente resiste nem o diabo nos segura.
O blues não tá só na trilha, ele é personagem. Ele chora, avisa, canta a dor dos que vieram antes. Cada acorde parece abrir um portal com os gritos, os lamentos e a resistência dos ancestrais. E é aí que o filme se torna mais do que cinema: é ritual, é memória, é chamado.
“Pecadores” já nasce clássico porque tem coragem. Coragem de dizer que o mal tem nome e história. Coragem de mostrar que nossa arte cura e também protege. E, principalmente, coragem de mostrar que mesmo quando tudo parece perdido, a ancestralidade é escudo e espada como aquele de quem carrego o nome.
Esse é um daqueles filmes que não dá pra só assistir. É pra sentir. É pra lembrar de onde a gente veio e por que seguimos aqui. É pra sentar na cadeira com o coração aberto e o punho fechado. Porque ele fala da gente. Ele é sobre a gente. E ele nos lembra que, apesar de tudo, a gente ainda está aqui.
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