Nos últimos anos, uma silenciosa deformação no sistema de justiça civil tem se consolidado nos tribunais brasileiros: a banalização do dano moral. Sob a justificativa de coibir a “indústria da indenização”, juízes e tribunais, em especial o STJ e o TJSP, vêm sistematicamente reduzindo os valores de condenações, mesmo diante de ofensas graves à dignidade da pessoa humana. O resultado é perverso: direitos violados são reconhecidos, mas indenizados de forma simbólica.
Estamos diante de uma perigosa inversão de valores. O dano moral, que deveria cumprir papel reparatório e pedagógico, tornou-se um instrumento desidratado, esvaziado de efetividade. Consumidores humilhados, pacientes com tratamentos negados por planos de saúde, trabalhadores assediados, famílias expostas a situações vexatórias — todos recebem decisões que reconhecem o sofrimento, mas lhe atribuem preços incompatíveis com a realidade vivida.
Indenizações fixadas entre R$ 1.000 e R$ 5.000 passaram a ser o novo padrão informal da jurisprudência, independentemente da gravidade da conduta ofensiva. Quando muito, o valor atinge R$ 10 mil em situações extremas. Os tribunais justificam esse rebaixamento dizendo que o dano moral não pode ser “fonte de enriquecimento” nem “mercantilização da dor”. Ora, desde quando o acesso à Justiça e a devida reparação se confundem com enriquecimento ilícito? Essa retórica é um salvo-conduto para que grandes empresas continuem abusando da população, com a certeza de que o custo judicial será insignificante.
O que está em curso, na prática, é a normalização institucional da impunidade civil. Em vez de coibir condutas lesivas, a jurisprudência atual estimula reincidências, pois o dano causado se torna financeiramente vantajoso para o ofensor. A vítima, por outro lado, arca com o custo emocional, processual e, muitas vezes, financeiro, apenas para ver sua dor precificada como se fosse uma taxa simbólica de frustração.
Não se nega que haja demandas oportunistas no Judiciário — como em qualquer sistema —, mas isso jamais pode justificar o sacrifício do instituto do dano moral em sua totalidade. É dever do Judiciário separar o joio do trigo, não deslegitimar o trigo por medo do joio. Generalizações são perigosas, e o discurso do “combate à indústria do dano moral” tem servido de escudo ideológico para decisões que, muitas vezes, se afastam do princípio da dignidade da pessoa humana e da função preventiva do Direito Civil.
Além disso, a desvalorização das indenizações contribui diretamente para o aumento das desigualdades no acesso à Justiça. O cidadão comum, já vulnerável, vê cada vez menos sentido em recorrer ao Judiciário para reparar um abuso. Afinal, o custo emocional e temporal da ação não compensa uma indenização que não cobre nem o transporte até o fórum.
É preciso que os operadores do Direito — especialmente a magistratura — façam uma autocrítica profunda sobre o papel da jurisdição na proteção dos direitos fundamentais. O dano moral precisa voltar a cumprir sua função: compensar a dor real de pessoas reais, e inibir a conduta reiterada de quem viola direitos com frieza corporativa.
A Justiça não pode ser cúmplice do desrespeito. E não pode continuar tratando a dor dos brasileiros como um número irrelevante em uma planilha de precedentes.
Dra. Claudia Cavalcante
Advogada OAB/SP 468.550
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