Na última quinta-feira, 1º de maio, uma senhora com mais de 80 anos viveu um episódio alarmante de negligência médica na UPA de Franco da Rocha, unidade de saúde gerenciada pelo município. Chegando ao local por volta das 2h da madrugada, permaneceu mais de 12 horas mal acomodada em uma cadeira de rodas, sem acesso a uma maca, sem alimentação nesse período e, ainda mais grave, sem a devida troca ou limpeza da sonda de gastrostomia, essencial para sua nutrição e saúde.
A paciente foi medicada superficialmente e, mesmo com um quadro delicado, o médico do plantão anterior autorizou alta sem uma avaliação criteriosa. Só após uma reclamação formal feita ao diretor técnico da unidade, ela foi finalmente reavaliada e constatado seu estado grave, o que determinou sua imediata internação. No entanto, a transferência para um hospital de maior complexidade só ocorreu às 17h, para o Hospital Lacaz, em Francisco Morato, totalizando mais de 15 horas de espera desde a chegada à UPA.
O caso revela não apenas falhas individuais no atendimento, mas também um problema estrutural mais amplo. O município de Franco da Rocha conta atualmente com apenas um hospital público de maior complexidade, o Hospital Albano, situado na área do Juquery. Além disso, mesmo para cidadãos que possuem plano de saúde, a cidade dispõe de apenas um hospital particular de pronto atendimento, limitando severamente o acesso a serviços de saúde de qualidade em situações de emergência.
QUAIS DIREITOS FORAM VIOLADOS?
O Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) assegura uma série de garantias fundamentais, entre elas:
Atendimento prioritário e digno: o art. 3º assegura prioridade na efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. Manter uma idosa gravemente doente em uma cadeira de rodas por mais de 12 horas, sem alimentação e sem cuidados com a sonda, é uma violação clara desse direito.
Atendimento na saúde com garantia de qualidade e acesso: o art. 15 estabelece que o idoso tem direito a atendimento preferencial no SUS e que os órgãos públicos devem prover recursos humanos e materiais para assegurar essa atenção. Falta de macas, ausência de ouvidoria (mesmo no feriado), demora excessiva no atendimento e falhas nos procedimentos são contrárias a essa obrigação legal.
Além disso, a Constituição Federal, no art. 196, prevê que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
CABE INDENIZAÇÃO?
Sim, é possível buscar indenização por danos morais e materiais. A negligência no atendimento médico, somada à falha na estrutura do serviço (ausência de leito adequado, falta de equipamentos mínimos, falha na prestação contínua do cuidado), pode configurar responsabilidade civil do Estado.
Como a UPA é gerenciada diretamente pelo município de Franco da Rocha, a responsabilidade recai sobre o próprio município, que responde pelos danos causados por seus serviços de saúde, mesmo que a falha tenha sido de profissionais específicos ou da gestão da unidade.
No Brasil, vigora a responsabilidade objetiva do Estado (art. 37, §6º da Constituição Federal), ou seja, não é preciso comprovar culpa, apenas o dano e o nexo de causalidade com o serviço público deficiente.
No caso, ficaram claros:
- o dano (sofrimento físico e emocional da idosa e de seus familiares);
- o serviço defeituoso (falta de condições mínimas, negligência no atendimento, alta indevida, demora para internação);
- o nexo causal (a situação de vulnerabilidade foi causada ou agravada pela falha do atendimento prestado pela UPA, sob responsabilidade municipal).
A AÇÃO PODE INCLUIR:
- Indenização por danos morais, pelo sofrimento, angústia e risco à saúde;
- Obrigação de fazer, para que o município adote providências para melhorar as condições da UPA;
- Eventualmente, denúncia ao Ministério Público, que pode instaurar investigação por violação de direitos da pessoa idosa e determinar medidas corretivas.
A NECESSIDADE DE INVESTIMENTOS E NOVAS PARCERIAS
O episódio escancara não apenas falhas pontuais, mas a carência de infraestrutura hospitalar no município. Com apenas um hospital público de maior complexidade e um hospital particular de pronto atendimento, a população local — mesmo aqueles com plano de saúde — sofre com a escassez de leitos e recursos, especialmente em situações de alta demanda.
É urgente que o poder público destine mais incentivos financeiros à saúde, inclusive com a construção de um novo hospital para atender a demanda crescente. Além disso, é essencial atrair parcerias com a iniciativa privada, intermediando negociações com empresários do setor da saúde para que tragam novos hospitais particulares para a região.
Tal iniciativa não só melhoraria o fluxo de atendimento e desafogaria o sistema público, como também estimularia a economia local, com a abertura de postos de trabalho diretos e indiretos, gerando benefícios amplos para a população.
O PAPEL DA DENÚNCIA E DA MOBILIZAÇÃO SOCIAL
A ausência da ouvidoria durante o feriado agravou a dificuldade de acessar os mecanismos formais de reclamação. Nesses casos, é possível também acionar a Ouvidoria do SUS, o Ministério Público Estadual (pela Promotoria de Defesa do Idoso ou da Saúde Pública) e até mesmo a Defensoria Pública, caso a família precise de apoio jurídico.
Este caso não é apenas um alerta sobre falhas pontuais, mas sobre um problema estrutural e crônico. Garantir os direitos da pessoa idosa e da população em geral passa por investimentos, parcerias e fiscalização, para que a saúde pública cumpra seu papel de forma efetiva e digna.
Afinal, cuidar da saúde é investir na dignidade humana e no desenvolvimento da sociedade.
Dra. Claudia Cavalcante
Advogada OAB/SP 468.550
Comentários: