Uma das teorias que eu mais gosto e fez minha cabeça explodir quando ouvi pela primeira vez é a dos seis graus de separação. Ela diz que, mesmo sem conhecermos diretamente alguém, estamos a poucos contatos de distância de qualquer pessoa no planeta. A ideia foi proposta inicialmente pelo escritor Frigyes Karinthy em 1929 e, ao longo dos anos, foi testada e analisada por sociólogos e matemáticos, tornando-se um conceito central para entender redes sociais e conexões humanas.
No entanto, quando falamos sobre a periferia e sobre artistas como Djonga, essa teoria ganha uma nova perspectiva. Na quebrada, os laços não seguem uma estrutura abstrata de conexões globais. Eles são diretos, imediatos e íntimos. A música de Djonga não precisa atravessar seis níveis para tocar um jovem preto de favela, porque ele já nasce dentro dessa rede, compartilhando as mesmas dores, sonhos e desafios. Aqui, a separação é mínima, quase inexistente, o que transforma a arte em algo ainda mais poderoso.
Quando um jovem preto coloca um fone de ouvido e escuta uma nova faixa do rapper, a distância entre ele e o artista não se mede em graus de separação, mas em identificação e pertencimento. Ele não precisa que alguém o conecte ao Djonga. Ele já está lá, vivendo o que suas rimas descrevem.
E é por isso que “Quanto Mais Eu Como, Mais Fome Eu Sinto”, álbum lançado pelo rapper no último dia 13 de março, é um resgate, um grito coletivo, um manifesto de quem entende que, por mais que se conquiste, ainda há muito mais para buscar. Se a teoria dos seis graus de separação tenta explicar como as conexões se formam no mundo, Djonga prova que, em 12 faixas e 42 minutos de álbum, na quebrada essas conexões já existem, na urgência de quem não pode se dar ao luxo de esperar.
O dia em que conheci Djonga e me interessei pela história do Gustavo
15 de junho de 2018, apresentação especial de Criolo e Mano Brown no antigo Espaço das Américas, localizado na Barra Funda em São Paulo. Comprei o ingresso só um dia antes, quando fiquei sabendo do show. A expectativa era a melhor possível com duas referências dividindo o palco em uma noite que ficaria marcada na memória.
Sempre pontual, cheguei no local bem na abertura dos portões e, assim que entrei casa, um cara franzino, com calça branca rasgada e camisa quadriculada já deixava o galera vidrada ainda na abertura da festa. Foi quando eu conheci o Djonga e me interessei pela história do Gustavo.
Eu vi Djonga por cerca de uns 20 minutos no palco, mas já foi o suficiente pra sentir que ele já sabia de muita coisa dos meus poucos mais de 20 anos de vida. Chegando em casa, baixei toda discografia dele, incluindo os dois álbuns lançados até então: “Heresia” (2017) e o “Menino Que Queria Ser Deus” (2018).
Entre tantas faixas e canetas que arrepiavam o corpo, uma me fez chorar de soluçar. Faziam só dois meses que eu sabia que meu filho estava pra vir ao mundo, tudo muito novo, sacou? No fone me deparei com a faixa “Canção Pro Meu Filho” e o resto, amigos, é história. Djonga seria trilha sonora não só da minha relação com o Antony, mas também, anos depois, marcaria minha pele com um trecho de “BENÇA” para descrever meu sentimento pela minha vó após sua partida em 2021.
Em poucos meses, fui em incontáveis shows do Djonga em São Paulo, mas um foi a virada de chave: sua apresentação no “Sons da Ruas” em novembro de 2018. Nesse dia, Djonga só não fez chover. Era gente chorando na pista, protestos contra a situação política do país e Gustavo olhando para o o horizonte emocionado.
Quando ele terminou a apresentação, senti fome. Coloquei na minha cabeça que um dia eu estaria ao seu lado no palco, trabalhando na produção de algum evento, mesmo sem experiência alguma nessa área. A odd tava tipo 13 que isso daria certo, mas fiz minha fézinha.
Em 2022, dois amigos produtores de eventos (Evandro Pay e Luiz Cost) confiaram em mim e me convidaram pra produzir dois festivais com o Djonga como atração principal em ambos. Quatro anos depois, a história foi implacável: ali estava eu, do outro lado do palco, trabalhando com Djonga. E deu green. Em sua primeira vinda pra minha região, eu fui o responsável pela recepção do homem. Quanto lembro de quase tudo o que foi, me pego sorrindo, pois até ali, minha vontade foi maior que meu talento.
Contaremos aos nossos filhos, como “João e Maria”
O que torna “Quanto Mais Eu Como, Mais Fome Eu Sinto” tão diferente não é apenas a qualidade musical ou a poder do Djonga em rimar sobre a realidade da favela. O álbum é um lembrete de que, mesmo depois de conquistar tanto, ele ainda sente a mesma fome que move milhões de jovens pretos e periféricos todos os dias. A fome de ser ouvido, de ser respeitado, de viver com dignidade. É esse sentimento que mantém a conexão dele viva com quem está do outro lado do fone de ouvido, transformando suas rimas em trilha sonora da luta diária de tanta gente.
Quando eu olho para trás e lembro daquele show em 2018, percebo que a minha história com o Djonga não é só minha. É a história de vários manos e minas de quebrada que cresceram ouvindo ele, se vendo em suas letras e entendendo que podem, sim, sonhar alto. Porque Djonga não fala de um lugar distante. Ele vem da mesma realidade, encarou os mesmos desafios e, ao invés de se afastar das ruas que o formaram, usa sua música para fortalecer quem ainda está nelas.
Mesmo depois de bater no peito e dizer “eu sou o maior” em O Dono do Lugar, Djonga nunca esquece de onde veio. Suas letras continuam sendo uma extensão da vivência de quem o escuta no caminho do trampo, do corre, da escola ou de qualquer batalha que precise vencer no dia. Se a teoria dos seis graus de separação tenta explicar o que nos liga, Djonga prova que, na real, nunca estivemos separados.
Porque no fim das contas, enquanto houver fome de mudança, de justiça e de representatividade, Djonga sempre vai estar lá, rimando o que milhões de nós sentimos, mas nem sempre conseguimos dizer.
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