Dois Pontos | O portal mais atualizado da região do CIMBAJU

Quarta-feira, 12 de Novembro de 2025
Tudo é sobre você (até quando não é)

Dani Almeida

Tudo é sobre você (até quando não é)

Como o hiperindividualismo digital transformou a empatia em espetáculo e reduziu o outro a espelho nas redes sociais

IMPRIMIR
Use este espaço apenas para a comunicação de erros nesta postagem
Máximo 600 caracteres.

A internet mudou a forma como vivemos e expressamos o que sentimos. A empatia, que antes era um gesto de escuta e conexão entre pessoas, passou a funcionar também como uma forma de exibição. Reconhecer o outro como alguém com sentimentos e vivências próprias parece menos importante do que mostrar publicamente o próprio cuidado. Aos poucos, o ato de se importar se confunde com a necessidade de ser visto, e o sentir se torna parte do mesmo jogo de visibilidade que move as redes.

O individualismo digital, alimentado por plataformas que valorizam quem aparece mais, transforma os espaços de convivência em lugares de aprovação e comparação. As demonstrações de carinho e solidariedade seguem uma lógica de espetáculo, em que emoções são moldadas para serem mostradas e consumidas. O outro passa a servir como espelho que confirma a imagem que cada um quer manter, enquanto o sentido da empatia enfraquece diante da necessidade constante de ser visto.

A busca por reconhecimento nas redes cria um ambiente em que a empatia é reinterpretada o tempo todo. O contato com o outro deixa de se basear em escuta e troca e passa a depender de como esse outro contribui para a construção da própria imagem. O que deveria ser uma relação se transforma em ferramenta de validação. A dor e a vulnerabilidade só ganham destaque quando se encaixam na estética de algo bonito, interessante ou compartilhável.

Leia Também:

Por isso, hoje em dia, a dor do outro é tratada como história a ser consumida, e a solidariedade vira uma resposta que precisa ser vista. Curtidas, comentários e compartilhamentos funcionam como sinais de envolvimento emocional, mas acabam substituindo o sentimento verdadeiro por gestos que apenas demonstram atenção. Aos poucos, sentir junto deixa de ser um ato sincero e se torna uma maneira de parecer alguém sensível.

Esse processo enfraquece as experiências que realmente nos conectam. A empatia, que antes criava laços e reconhecia o outro como parte de uma relação, passa a ser vista como algo individual, uma qualidade que se mostra. O outro deixa de ser alguém com quem se conversa e se torna apenas um reflexo usado para reforçar a própria imagem. O resultado é uma sociedade em que todos estão conectados, mas poucos se escutam, e onde ser reconhecido parece mais importante do que se encontrar de verdade.

As plataformas reforçam esse comportamento ao destacar o que gera mais curtidas e compartilhamentos. Os algoritmos estimulam respostas rápidas e emocionais, mas superficiais. A pressa em reagir, comentar ou se identificar, substitui o tempo necessário para compreender o outro com mais profundidade. A empatia passa a ser imediata e condicionada, funcionando dentro das mesmas regras que definem quem tem mais visibilidade.

Quando Guy Debord escreveu A Sociedade do Espetáculo, em 1967, ele já dizia que tudo o que era vivido passava a ser representado. Décadas depois, sua ideia se confirma nas redes sociais, onde até as emoções precisam virar imagem para existirem. A empatia entra nesse mesmo sistema: ela é mostrada como sinal de sensibilidade, mas é moldada para caber no formato de um post. O gesto de sentir é trocado pela atuação de quem sente, e o encontro com o outro se reduz ao que pode ser visto, curtido e compartilhado.

Além disso, o excesso de informações e imagens reduz o tempo e a vontade de se envolver de forma profunda. Diante de tantas tragédias, causas e campanhas, o olhar se acostuma a sentir por um instante e logo seguir em frente. Esse ciclo de empatia rápida e esquecimento cria uma sensação de envolvimento moral sem exigir mudança real. As pessoas aprendem a sentir apenas o suficiente para participar do debate, mas não o bastante para serem transformadas por ele.

A cultura do “eu” nas redes não muda só a empatia, mas também o sentido de comunidade. O pertencimento passa a se formar por afinidade de imagem e discurso, e não por vínculos afetivos duradouros. As relações se baseiam em narrativas pessoais, e não mais em objetivos coletivos. O outro importa apenas enquanto reforça a versão de si mesmo que se quer manter, e a convivência passa a depender mais da aparência do que da presença.

A sociedade do “eu”, movida pela autopromoção e pela necessidade constante de reafirmação, cria uma distância emocional disfarçada de proximidade. As redes oferecem a ilusão de intimidade, mas raramente permitem o encontro verdadeiro, aquele que envolve vulnerabilidade e diferença. A empatia se torna uma linguagem que todos sabem repetir, mas poucos conseguem viver.

Recuperar o valor real da empatia exige desacelerar e se reconectar com o outro fora das dinâmicas da visibilidade. É sentir sem precisar provar, escutar sem transformar a escuta em espetáculo. A tecnologia vai continuar fazendo parte da vida, mas o modo como escolhemos usá-la define se continuaremos capazes de sentir juntos ou se seremos apenas imagens em busca de atenção.

Comentários:
Dani Almeida

Publicado por:

Dani Almeida

Jornalista e estudou Ciências Sociais na UNIFESP. Escreve sobre comunicação, cultura pop, especialmente a asiática, além de entretenimento, esportes e sociedade.

Saiba Mais

Envie sua mensagem, será um prazer falar com você ; )